sábado, 1 de setembro de 2012

UMA PROSA POÉTICA PARA NOS ENTERNECER

Laços de Cetim

Maria de Lourdes Maia Gonçalves - AIL
   (Texto classificado no Concurso Nacional e Internacional promovido pela  Academia Pontagrossensse de Letras e Artes de 2012).

Resolvi que hoje abriria o baú, aquele baú de recordações que todo mundo tem. O meu está guardado em lugar de fácil acesso, entretanto, para abri-lo é necessário não ter pressa, posto que as histórias ali preservadas careçam de zelo e carinho para aflorar à superfície do tempo e voltarem reais e absolutas.

Voltar ao passado, assim por inteiro, requer boa dose de autodomínio para não atropelar as emoções e correr o risco de se perder no labirinto do tempo. Tem que se ter cuidado, tocá-las como se toca o cristal translúcido e frágil para que não se quebre o seu encanto e magia.

Pois bem: baú aberto, lembranças à mostra, é sensato seguir com calma para conduzir o fio da meada desse mundo mágico que são as recordações. A vantagem é que nele não há impedimentos nem limites. Outra vantagem é que as lembranças se impõem e se tornam atemporais e cósmicas, de maneira que se pode muito bem juntar numa só época, acontecimentos ocorridos em tempos diferentes. A convivência se faz pacífica e harmoniosa. Aquele passeio de bicicleta pode muito bem, ser revivido tanto nos cami-nhos de sua infância, como nos jardins e bosques de qualquer lugar do mundo; é possível recriar outro cenário, de acordo com o gosto e com o estado de espírito de quem ultrapassa os umbrais do passado e adentra os acervos da memória conservados em baú de perfumada madeira, que abriga em seu interior riquezas de um tempo em que as me-ninas usavam nos cabelos laços de fitas de coloridos cetins e vestidos de organza borda-dos à mão por dedicadas e amorosas mães.

A fidelidade às lembranças precisa ser resguardada, afinal, é sua história; no entanto, temos a opção de transportá-las para qualquer canto do planeta e até além da Via Láctea e penetrar em suas entranhas. Lembre-se: o homem é parte do cosmos e seu direito de ir e vir alcança o âmbito universal.

De repente, aquele papagaio de papel, cúmplice de aventuras infantis, pode mui-to bem se tornar a estrela – quem sabe, Bellatrix – que guiará seus devaneios e, assim, salvaguardar e enriquecer o patrimônio das lembranças e consolidar o poder de conciliá-las – antigas e novas – numa coexistência utópica e real, seguindo o princípio de que os opostos se atraem e justificam as ações. A opção é sua; a liberdade de onde, com quem e quando revivê-las pertence unicamente a você.

Voltemos ao baú. Vejo delicadas florzinhas de tecido que ornamentaram as Bo-das de Ouro de meus pais. Continuam ali, impecavelmente intactas, talvez a sugerir que esse amor permaneça em outra dimensão e dele, cá na terra, seja sentida a sua energia benfazeja através de seus filhos.

De repente, as fotos – amareladas como haviam de ser – ganham movimento e proporção em minha mente. Surpreendo-me a cantar modinhas e relembrar diálogos entre os primos – eram muitos – que compartilhavam as horas de puro lazer. A bicicleta também estava lá. Um de cada vez experimentava a liberdade que aquele veículo de duas rodas proporcionava. Como criança e bicicleta sempre terminam em quedas e arra-nhões... Ah, como eram engraçadas as derrapadas ladeiras abaixo, sobretudo, nos dias em que o “Geral” – o vento de Aracati, aquele vento marítimo e generoso – estava mais afoito. Depois, vinham os “sermões” de pais e tios, vistos pelos autores das “artes” como desnecessários e intermináveis. Hoje se sabe que eram imprescindíveis.

Bolinhas de gude, bonecas, corda de pular, miniaturas de piano – lembro-me muito bem de um azul e branco, de três oitavas, que ganhei no catecismo e tocava como um piano de verdade – ; queimadas, esconde-esconde, fantoches, livros de história... Está tudo ali, no baú das recordações, protegido no cantinho mais seguro dos registros da memória. Lá, também está a receita da tapioca crocante de mamãe, a convivência escolar, o canto orfeônico, o presépio de Jesus Menino frente à Matriz, o sorriso das crianças e o olhar protetor dos pais. A concorrência pela melhor nota da classe, as flores do jardim da praça, os centenários casarões, o aroma dos jasmins de minha casa, as me-lhores amigas, as inesquecíveis e eternas amigas e os primeiros olhares dos meninos.

... Entretida em minhas lembranças não vi quando o sol todo gentil, recuou lá no horizonte e deu passagem à Lua. Ah, a Lua... Doce e terna, agradável e aconchegante como as lembranças do tempo que vai longe. Distância que só existe na certidão do tempo, inexoravelmente somado e subtraído, espaço físico que insiste em nos afastar das histórias que, volta e meia, vem à tona cheias de intimidade e poder. E não adianta ter ciência que passado é passado. Para aquele que faz questão de guardar tesouro de real valor passado reverte-se em presente, é parte do livro da vida, deve ser lido e relido, pode ser aberto a qualquer página, em qualquer lugar, dia ou hora, tem o poder mágico de transportar pessoas para ontem, hoje e sempre nos permitir que vivamos esse tempo novamente...







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